O paradoxo da experiência fluida

Experiência do Usuário não deveria ser sobre essas diferenças

O paradoxo da experiência fluida
Photo by Richard Horvath / Unsplash

Se você trabalha há um tempo com desenvolvimento de software, principalmente se tiver interação com User Experiencers ou User Interfacers, provavelmente já deve ter ouvido a seguinte frase: “a experiência só é boa o suficiente se ela for autoexplicativa, se a experiência for fluida”.

No geral, essa frase — um tanto arrogante, é utilizada quando estamos nas primeiras ideações de prototipação e alguém defende que o protótipo quando é autossuficiente não é necessário “ensinar” ou “guiar” o usuário, ela se explica e é intuitiva.

Confesso, essa frase me causa arrepios, mas antes de explicar o motivo, gostaria de citar alguns pontos que devem servir de premissa para entendermos que o termo “experiência fluida” é um paradoxo.

Diferenças físicas

Todo ser humano é único, e vários aspectos científicos conseguem facilmente provar esta hipótese. De um ser humano a outro o DNA pode variar em torno de 0,5% (WILLIAMS, 2012). Parece pouco, mas como o código do DNA é uma combinação de 4 letras e nosso genoma corresponde a 3,2 bilhões de “linhas destes códigos” teríamos entre pessoas cerca de 16 milhões de linhas que podem varias. Como se não parecesse grande o suficiente imagine que o número de combinações possível é de 4¹⁶ ⁰⁰⁰ ⁰⁰⁰, ou seja é praticamente zero a possibilidade de alguém ter o DNA igual ao seu.

Fora essa diferença absurda de um DNA para outro, outros aspectos do corpo humano são únicos, tais como:

  1. A impressão digital dos dedos, que não é um item puramente genético, mas até as condições dentro do útero da mãe influenciam em como serão os desenhos;
  2. Seu modo de andar, ele é tão único que pesquisas feitas nos anos 70 indicam que você é capaz de reconhecer o jeito de andar de alguém próximo só vendo o jeito de caminhar em quase 90% das vezes;
  3. As batidas do seu coração, como todo coração varia de tamanho, ele também tem um ritmo próprio e que não se compara com de outras pessoas;
  4. O som da sua voz, como explica pesquisadores da University of London afirmando que o aparelho fonador de pessoa para pessoa é muito diferente em seus tamanhos, produzindo notas que por melhor que seja uma imitação ainda é única.

Diferença no que pensamos

Existem diversos fatores que nos moldam e nos diferenciam na forma de pensar, desde nossa criação, assim como explica as teorias de Freud (1856-1939) e sendo até possível reproduzirmos o que vivemos na nossa criação em até 30% na National Library of Medicine. Temos também as diferenças que vêm das nossas predisposições genéticas, que podem corresponder de 30% a 60%, da nossa personalidade, segundo estudos publicados em 2020 pela revista Nature.

A forma com que vivenciamos a puberdade e  pasmem, nosso estilo de vida até o fim da nossa vida pode criar marcas no nosso genoma e perpetuar costumes, personalidades e vícios hereditários, segundo estudos de 2015 publicados na Nature.

Diferença onde estamos posicionados na sociedade

Apesar de delicado, é sabido que também somos diferentes em termos sociais, temos diferenças marcantes na nossa sociedade que nos aparta e nos isola, muitas vezes. Em diversos termos e quesitos, economicamente, nossas ocupações, nossas formações e especializações, nossas aspirações políticas e sociais, a infraestrutura de onde moramos e a que temos acesso. Todos estes pontos também nos diferenciam

Diferença no que sentimos

Um experimento apresentado no livro “Antropologia das Emoções” das doutoras Claudia Barcellos Rezende e Maria Claudia Pereira Coelho tem um estudo que as auxilia a corroborar a hipótese de que os seres humanos são diferentes até na forma que sentimos estímulos similares. Este estudo pretendia entender como as emoções são sentidas através dos povos. Será que diferentes culturas, recebendo os mesmo estímulos sentem as mesmas coisas da mesma forma? Para isto foi levado a uma tribo africana que vivia isolada da sociedade, uma peça de Shakespeare, Hamlet, para ser mais preciso. Para a surpresa das pesquisadoras elas descobriram que o fator cultural é crucial para determinar como sentimos, ou como percebemos as coisas.

A resposta que a leitura da peça produz no público civilizado era muito diferente da que produzia nesta tribo, sentimentos tais como (SPOILER de livro escrito na renascença): a revolta que o público civilizado sentia ao ver o irmão do rei morto ao assumir o trono era encarado com naturalidade para a tribo, que tinha costumes de haver casamentos entre familiares nos espólios para que a família permanecesse inteira e protegida. Este é um dos grandes exemplos do que o que produz um sentimento em um público não produz o mesmo sentimento em outro, segundo a pesquisa.

Enfim o Paradoxo: o individual vs o coletivo

Falamos muito sobre diferenças, mas Experiência do Usuário não deveria ser sobre essas diferenças. A definição de usabilidade é um “conjunto de métodos criados para maximizar a facilidade de utilização”, assim como definiriam Jesse James Garrett e Peter Morville, grandes nomes do User Experience americano. Porém, os mesmos autores afirmam que User Experience (UX) “foca em ter um profundo conhecimento do usuário, o que precisa, seus valores, suas habilidades e limitações”.

Como podemos garantir então que uma experiência é fluida dentre tantas diferenças?

Não temos como garantir que uma experiência é de fato fluída para 100% do público que atendemos, porém, se conhecermos bem a nossa persona talvez conheceremos minimamente este requisitos trazidos por Garrett e Morville, mas como garantir que 100% dos nossos usuários esteja naquele problema identificado? Pesquisa constante de usabilidade, o que faz a “fluidez” ser algo sempre a ser perseguido e se nosso público alvo muda, talvez até utópico.

Quanto mais amplo o acesso de pessoas ao nosso produto, que tenham características variadas, menor o grau de probabilidade de uma experiência ser auto explicativa, ou fluida.

Case Snapchat

Se você tem uma conta no Snapchat, provavelmente você já recebeu esse tipo de notificação da plataforma. O Snapchat é um bom case de como nem sempre considerar que uma experiência é fluida, ela não precisa ser explicada. Existem muitas oportunidades de marketing na forma que são divulgadas novas features. Um exemplo utilizado pelo Snapchat, foi no lançamento do reconhecimento do rosto do usuário e inclusão deste em vídeos variados, como no exemplo abaixo.

O aplicativo te notifica dessas novidades, e te ensina a usar durante essa divulgação.

Imagem by snapchat

Quando trabalhei em um grande banco brasileiro, eu ouvia essa frase de “experiência fluida” constantemente da minha gerente. Entretanto, este grande banco já existe há quase cem anos, havia várias gerações de clientes: millennials, baby boomers, geração X, Y, entre outros. Entretanto, sempre tivemos que nos forçar a desenhar experiências que eram “fluidas” para todos os nossos clientes. Não preciso comentar que nunca alcançamos tal grau, não pelo menos enquanto eu trabalhava lá.

Invariavelmente essa amplitude de gerações dificulta a execução de uma experiência fluida, mas neste mesmo exemplo do Snapchat, observe a tabela gráfica abaixo.

Os usuários do Snapchat (em milhões), por idade. eMarketer, junho de 2016.

Esta tabela mostra que a maior parte da audiência do Snapchat é jovem, existe um crescimento bem tímido de penetração de outras gerações, mas ainda é majoritariamente jovem. Este é um cenário bem diferente do banco, e pasmem, mesmo assim o Snapchat  faz divulgação e ensina a utilizar suas novas features.

Sua experiência então não é fluida?

Ou, entendendo que é uma plataforma que pode estar acessível a todos eles preferem pecar pelo excesso do que pela falta? Fica para reflexão.

Obviamente não só idade ou geração é determinante para como nos comportamos ou lidamos com a tecnologia. O ambiente é um fator crucial para determinar nossos comportamentos, não o único, e assim guiar como desenhamos nossas personas.

Como entender o contexto de comportamento e ambiente

O behaviorismo fundado por John B. Watson (1878–1958), a ciência do comportamento, que tem uma ligação muito forte com as teorias ambientalistas de John Locke (1632–1704) que segundo o mesmo.

“A mente do recém-nascido era uma tabula rasa (página, folha ou tela em branco) — a história a ser ali escrita tinha por autor o meio ambiente, isto é, as condições e experiências de vida do indivíduo”. (PINHEIRO, 1994)

Ou seja, segundo essas teorias, que continuam válidas até hoje, tudo o que vivemos no nosso ambiente pode nos moldar e determinam nossos comportamentos, tais como: experiências de infância, classe social, gênero, contato com tecnologia, formação acadêmica, entre outros.

Atualmente sabe-se que não somente os fatores ambientais auxiliam a guiar os nossos comportamentos, mas também temos uma grande influência da nossa carga genética que nos possibilita demonstrar determinados comportamentos, ou não. Como se fosse uma predisposição.

E a experiência fluida?

Se não existe universalização da forma que sentimos, muito menos da forma em nos comportamos, o uso deste termo pode trazer uma visão errada do que de fato ele é assumir que seu posicionamento de experiência priorizará a experiência fluida está intrinsecamente ligada à formação das personas principais, ou de maior valor ao produto desenvolvido. É impossível alcançar um grau de experiência que consiga atingir em sua totalidade os possíveis usuários de um produto.

Posicionar-se como produto de experiência fluida é assumir que haverão exclusões nessa utilização. E não há problema nenhum nisso. Esta é uma estratégia de nicho. Havendo essa consciência, não passamos a impressão errada de experiência fluida do que de fato ela é: a experiência pode ser fluida para um determinado grupo chave do produto. E isso implica um alto grau de conhecimento sobre as personas que compõem sua base de usuários.

Referências