Dados não são suficientes para vender as suas ideias

Precisamos discutir o "dogmatismo" que paira sobre os dados

Dados não são suficientes para vender as suas ideias
Photo by Alexander Sinn / Unsplash

Muito se fala na incontestável credibilidade dos dados. De maneira até um pouco mística, repete-se exaustivamente no Teams e no Slack que os dados não mentem jamais. E eles seguem tão mistificados quanto os oráculos.

Mas será que na hora de provar uma hipótese ou vender uma ideia os dados são mesmo  recursos onipotentes?

É inquestionável a importância de uma análise quantitativa na área de Produtos, um bem elaborado business plan tem muito peso na hora de defender e priorizar um projeto ou uma feature. Os dados são artefatos imprescindíveis para PM’s, sem dados assume-se mais riscos nas tomadas de decisão e fica mais difícil entender se aquele item faz sentido para o produto, jornada ou para a composição do backlog.

O que precisa ser discutido é um certo "dogmatismo" que paira sobre os dados.

Em produtos, parte-se sempre de um cenário complexo, porque, por mais que o seu produto e organização sejam simples, eles estarão sempre dentro de um contexto complexo, ou seja, o mundo. Tecnologia em constante mudança, economias instáveis, cenários políticos e sociais distintos, concorrentes, mídia em ebulição, gestão de risco de imagem…Enfim, eu poderia fazer uma lista de fatores que tornam qualquer cenário, em se tratando de produtos, complexo, por mais que ele ou a sua organização sejam simples.

Por isso, esse "dogmatismo" em relação aos dados pode ser uma cilada. Em cenários complexos,  chancelar um diagnóstico em relação ao produto exige realizar uma análise transdisciplinar do tema, e os dados são importantes, mas são apenas uma parte (importante) desse processo.

Um caso hipotético para te ajudar a sair do dogmatismo

Imagine que a sua startup foi convidada por uma empresa que tem como uma de suas metas de ESG diminuir a evasão escolar em alunos do ensino médio das escolas públicas. A ideia é que sua startup crie um aplicativo para mitigar essa evasão. Você recebe os dados demográficos e percebe que há predominância na evasão entre os jovens do sexo masculino de 17 a 20.

Com esses dados, sua empresa conseguiria desenhar um projeto para a resolução desse problema? Pausa para pensar…

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Diante de um problema tão complexo, você:

1.    Pediria mais dados

2.    Chamaria mais profissionais para compor esse time de análise

3.    Desistiria do projeto e choraria em posição fetal na sua cama

Uma boa prática em Produtos permeia a composição de times transdisciplinares para análise de problemas, e nesse caso hipotético entender sob quais óticas o problema poderia ser analisado daria pistas sobre quais profissionais poderiam compor esse time de análise.

Fazer algumas perguntas para entender quais outros aspectos deveriam ser estudados pode ser uma saída para ir  além dos dados:

  • Onde acontece o problema? Nas escolas públicas de São Paulo.
  • Quais as consequências do problema  nas pessoas? Impactos sociais e econômicos diversos.
  • Quais são os atores impactados? Jovens, suas famílias e empresa que solicitou o produto.

O problema da evasão é um problema complexo, por isso, demanda uma análise transdisciplinar, os dados por si só não fornecem uma perspectiva  rica do problema porque não analisam a causa raiz da desistência dos estudantes. Tal análise só seria possível por meio de uma avaliação do contexto familiar, econômico, psicológico e de quaisquer outros fatores que te dariam uma perspectiva multidisciplinar da coisa.

Para entender o problema na sua totalidade seria necessário avaliar essas nuances que não aparecem na análise dos dados.

Mas se os dados não são suficientes para vender uma ideia, o que venderia?

Você criou o projeto do app e precisa vender essa ideia. Quais são os benefícios dele, além da diminuição da evasão é claro, que farão o seu cliente comprar?

Obviamente, que, se o pedido do cliente foi a criação de um app para diminuir a evasão escolar, essa é a função primária dele, certamente ele foi criado para isso e seu estudo de propensão já calculou o quanto ele poderia resolver esse problema.

Mas para vender sua ideia, além de apresentar a projeção desses resultados, ressaltar os impactos da diminuição da evasão escolar na vida das pessoas e na sociedade terá muita relevância, e isso você entendeu analisando seus contextos sociais e econômicos, indo a campo e interagindo com profissionais da área, como educadores, sociólogos e psicólogos, ou seja, realizando uma análise transdisciplinar.

Esse método de análise de problemas parte de um autor que se dedicou a entender o paradigma da complexidade, Edgar Morin. No livro Introdução ao Pensamento Complexo dá pra explorar mais a fundo essa teoria. De maneira bem resumida (bem mesmo, por que o conceito é muito maior), Morin propõe que a análise fragmentada de algo deveria preceder a uma etapa de complexificação, ou seja, de relação entre as partes, entre os contextos em que elas se inserem, as articulando com o todo.

Outro ponto de alerta sobre os dados: é preciso ter cautela com os vieses inconscientes transportados para eles.

Certamente você já deve ter visto em algum lugar sobre os vieses que as pesquisas do Google carregam, e isso pode ser entendido a partir dos dados. Eles traduzem muito bem como a máquina “aprende” enviesada pelo senso comum. Pesquise as palavras “bombeira” e “bombeiro” no Google Imagens, para a primeira, o que retorna são mulheres com fantasias sensuais de bombeiras e para o segundo termo, fotos de homens bombeiros.

A cientista de dados americana Cathy O'Neil tem um Ted interessante sobre isso:

Caso você não consiga ver o vídeo, vou dar um spoiler dele aqui, Cathy defende nele que os dados produzidos por machine learning podem ser enviesados e gerar análises míopes. E eles  estão mais presentes no nosso dia a dia do que você imagina.

Quando eu trabalhava em banco percebi isso algumas vezes. Análises de crédito de instituições financeiras são feitas com base em modelagem de dados e podem, por exemplo, dificultar o acesso a alguns tipos de crédito caso o CEP da sua casa indique que nessa localidade houve um aumento repentino na inadimplência, isso por que o algoritmo de decisão de crédito "aprendeu" desta maneira (pessoas de banco, confirmem minha percepção, por favor😀). Entretanto, pode ser que nesses CEP 's existam bons pagadores sendo penalizados pelo aprendizado míope do modelo matemático de concessão crédito.

Sintetizando

1.    Dados aliados a fatos, a hipóteses e analisados por uma equipe transdisciplinar,  compõem uma ótima estratégia de análise em Produtos, além disso, é necessário reconhecer que os dados mentem algumas vezes, e que eles não são onipotentes. Pode ser que no seu projeto para se chegar a uma boa proposta seja necessário ir muito além da análise de dados, e contar com a participação de profissionais de diversas áreas para uma análise transdisciplinar. Os dados fazem parte dessa análise, mas sozinhos eles não vendem sua ideia e não determinam os caminhos do produto.

2.    Olhar para os vieses inconscientes transportados para os dados é uma questão que permeia governança ambiental, social e corporativa, as ESG’s, que são a bola da vez. Desconfie de cenários muito previsíveis. Aquele dado capaz de aquecer os coraçõezinhos pode estar carregado de vieses inconscientes que a máquina aprende com o ser humano.

Coloquei aqui dois pontos sobre dados: encará-los como parte de um processo de análise transdisciplinar e ter em vista que eles podem ser enviesados por um certo senso comum. Gostaria de saber se isso faz sentido pra você. Depois comenta na publicação e me fala se você já exercita esse…”ceticismo” em relação aos dados para vender um projeto ou uma ideia.

Nos vemos no próximo texto!