O primeiro Chief Design Officer dos Estados Unidos: quando o design vira política pública
A nomeação de Joe Gebbia marca um momento histórico: design deixa de ser cosmética para virar infraestrutura de confiança pública e cidadania moderna.

Ao assumir o cargo de Chief Design Officer dos Estados Unidos, Joe Gebbia não herdou apenas 26 mil sites governamentais defasados. Herdou a oportunidade de provar que design não é cosmética — é infraestrutura.

A nomeação do cofundador do Airbnb para liderar a iniciativa "America by Design" representa um marco histórico: pela primeira vez, um governo federal coloca design no mesmo nível de prioridade estratégica que tecnologia, economia ou defesa. Não é mais sobre "deixar bonito". É sobre transformar a experiência de ser cidadão americano.
I’m honored to be appointed by President Trump as the first Chief Design Officer of the United States of America. (🧵)https://t.co/PPq5nb9ok1
— Joe Gebbia (@jgebbia) August 23, 2025
Os números:
- 26.000 interfaces chegam nas expectativas de satisfação das necessidades públicas;
- Apenas 6% dos sites tem score "bom" em performance mobile;
- Mas 45% dos sites não são mobile-friendly;
- Menos de 20% utilizam o design system do governo, o USWD.
Para uma nação que se orgulha de liderar em inovação tecnológica, interagir com o governo americano ainda parece uma experiência dos anos 1990.
Mas a questão real não é técnica — é cultural. A criação do primeiro Chief Design Officer federal sinaliza uma mudança de paradigma que vai muito além de interfaces: design como ferramenta de confiança pública, eficiência operacional e, fundamentalmente, cidadania moderna.
O custo real do mau design governamental
Os números do desastre do healthcare.gov em 2013 contam uma história devastadora sobre o custo do mau design. O orçamento inicial de $93,7 milhões explodiu para $1,7 bilhão — algumas estimativas chegam a $2 bilhões. No primeiro dia, quatro milhões de usuários visitaram o portal, mas apenas seis conseguiram se inscrever com sucesso.
Não foram apenas falhas técnicas. Um estudo de usabilidade detalhado revelou que os problemas iam muito além da infraestrutura: usuários tinham dificuldade para encontrar informações sobre planos e custos, criar logins, navegar pelo site, e usar recursos básicos como chat. A interface forçava múltiplos cliques para informações simples, e o sistema de autenticação — o primeiro passo crítico — criava um gargalo que amplificava todos os outros problemas.
Mas healthcare.gov não é um caso isolado. Pesquisas do Government Accountability Office mostram que 94% dos grandes projetos de TI federais são malsucedidos, mais de 50% atrasam, estouram o orçamento ou não atendem expectativas, e 41,4% são considerados fracassos completos.
O problema não está na tecnologia — está na abordagem. Sistemas governamentais tradicionalmente são projetados de dentro para fora, baseados em estruturas organizacionais internas, não em necessidades dos usuários. O resultado são interfaces que refletem a complexidade burocrática interna em vez de simplificar a experiência cidadã.
Não é apenas ineficiência — é corrosão da confiança democrática. Quando interagir com o governo é frustrante, cidadãos perdem fé na capacidade do estado de servir efetivamente. Design ruim se torna política ruim.
Precedentes internacionais: quando governos investem em design
A iniciativa de Gebbia não surge no vácuo. Existe um movimento global de governos que reconheceram design como infraestrutura crítica.
O Government Digital Service (GDS) do Reino Unido, estabelecido em 2011, se tornou o padrão-ouro mundial para transformação digital governamental. Em uma década, consolidou milhares de sites governamentais fragmentados no GOV.UK Design System, estimando economias anuais de bilhões de libras.
A Estônia tomou uma abordagem ainda mais radical. Desde 1991, redesenhou completamente a experiência de cidadania: 100% dos estonianos têm identidade digital, 99% dos serviços públicos estão online 24/7, e o ecossistema digital contribui com 4-7% do PIB anual.
Estes exemplos demonstram que investimento em design governamental não é custo — é multiplicador econômico e ferramenta de legitimidade democrática.
Estrutura e implementação: National Design Studio
Mas existe um contexto técnico importante que antecede essa nomeação. Desde 2015, o governo americano já possui o U.S. Web Design System (USWDS), um sistema de design federal que oferece mais de 40 componentes acessíveis e mobile-friendly. O USWDS já está sendo usado por mais de 100 sites governamentais que atendem coletivamente mais de 26 milhões de usuários por mês.
O problema não era falta de ferramentas — era falta de adoção sistemática e liderança estratégica. Menos de 20% dos sites federais usam os padrões do USWDS, criando experiências inconsistentes que corroem a confiança pública. A nomeação de Gebbia sinaliza que design deixou de ser opcional para se tornar obrigatório.
O National Design Studio estabelecido pela ordem executiva é cuidadosamente estruturado para navegar pelas complexidades burocráticas federais. Operando dentro do Executive Office of the President e reportando ao Chief of Staff, Gebbia possui autoridade suficiente para coordenar entre agências, mas flexibilidade para recrutar talentos do setor privado.
A estrutura temporal é estratégica: três anos para estabelecer mudanças sistêmicas, com marco simbólico de 4 de julho de 2026 — o 250º aniversário dos Estados Unidos. Não é apenas uma data comemorativa; é uma declaração de que design é parte da identidade nacional americana.
O prazo força priorização. Em vez de tentar reformar todos os 26 mil sites simultaneamente, a ordem executiva determina foco em "sites e locais físicos que têm maior impacto na vida cotidiana dos americanos". Isso significa priorizar interfaces que cidadãos usam frequentemente: IRS, Social Security, VA benefits, e outros pontos de atrito críticos.
Gebbia também recebeu autoridade para usar todos os mecanismos de contratação federal relevantes, incluindo o Intergovernmental Personnel Act, que permite contratação temporária de especialistas do setor privado. Isso é crucial porque talentos de design de alto nível raramente estão dispostos a navegar os processos burocráticos tradicionais de contratação governamental.
O desafio real não é técnico — é cultural. Mudanças requerem coordenação entre dezenas de agências federais, cada uma com suas próprias culturas organizacionais, sistemas legados, e processos estabelecidos.
Desafios e realidade da implementação
Transformar 26 mil sites em três anos não é apenas ambicioso — é quase impossível sem mudanças estruturais fundamentais em como o governo opera.
O primeiro obstáculo é resistência burocrática. Cada agência federal desenvolveu suas próprias convenções e culturas organizacionais ao longo de décadas. Mudanças em interfaces muitas vezes requerem alterações em fluxos de trabalho internos, treinamento de funcionários, e até reestruturação departamental.
Integração com sistemas legados cria complexidade técnica significativa. Muitas agências dependem de mainframes ou sistemas COBOL construídos nos anos 1970-80. Essas plataformas processam trilhões de dólares em transações anuais — qualquer interrupção pode ter consequências econômicas catastróficas.
Retenção de talentos também é crítico. O National Design Studio precisa competir com Google, Apple, Facebook, e startups por designers excepcionais. Salários governamentais, mesmo para posições seniores, raramente competem com pacotes de compensação do Vale do Silício.
Medição de sucesso representa desafio único. No setor privado, métricas de sucesso são claras: receita, crescimento de usuários, retenção. Para serviços governamentais, definir sucesso é mais complexo. Satisfação do usuário? Tempo de processamento? Redução em chamadas para centrais de atendimento?
Sustentabilidade política é talvez o maior risco. O National Design Studio é iniciativa executiva que pode ser revertida por futuras administrações. Para sobreviver mudanças políticas, Gebbia precisa demonstrar resultados tangíveis que beneficiem cidadãos independentemente de afiliação partidária.
Conclusão: design como infraestrutura democrática
A nomeação de Joe Gebbia como primeiro Chief Design Officer dos Estados Unidos marca mais que uma mudança administrativa — sinaliza o reconhecimento de design como capacidade crítica para democracias modernas. Em uma era onde a confiança em instituições públicas está em declínio globalmente, experiências bem projetadas podem ser a base para um renovado engajamento cívico.
Se Gebbia conseguir demonstrar que design pode transformar como milhões de americanos interagem com seu governo, ele terá provado que design não é apenas nice-to-have, mas infraestrutura essencial para democracia contemporânea.
Raramente o trabalho de designers carregou tamanha consequência histórica.
Para se aprofundar mais:
- Executive Order: "Improving Our Nation Through Better Design"
- GOV.UK Design System - O modelo britânico de design governamental
- U.S. Web Design System (USWDS) - A base técnica da transformação americana
- e-Estonia - O case study de digitalização governamental mais avançado do mundo
- Government Digital Service Blog - Insights sobre transformação digital pública
- 18F - A digital services agency que precedeu a iniciativa de Gebbia