Por mais simples que um produto possa parecer à primeira vista, nós não notamos a complexidade que existe nele. Desde o desenvolvimento, etapa que requer esforços de engenharia, código, bases de dados, design de interfaces, pesquisas de experiência de usuário (UX), até estratégias de marketing e divulgação.
Todas essas habilidades contribuem para a tangibilização de uma proposta de valor e consequentemente para o sucesso de um produto.
Além disso, existe o fato de que produtos são criados por pessoas, o que contribui para aumentar a sua complexidade e torna o seu processo de criação ainda mais incrível.
Nós, como pessoas, não isolamos nossas percepções, ideias, crenças e culturas daquilo que criamos.
Embora possamos nos basear em dados para todas as decisões, ainda existe uma carga de subjetividade na criação de produtos e ela é resultado da tradução da nossa criatividade em artefatos de desenvolvimento.
Quando falo em complexidade aqui, não uso o termo para descrever a qualidade de algo difícil, complicado de ser feito. O complexo a que me refiro representa um conjunto de coisas conectadas em funcionamento para satisfazer um objetivo comum.
Antes de trazer mais detalhes a respeito da complexidade, vamos discutir a respeito de um modo de pensar bastante comum em nossa área de gerenciamento de produtos.
O pensamento analítico
Analisar algo é o processo de quebrar um conceito, ou uma ideia, ou um projeto, em suas partes constituintes e isolar o que é mais elementar para que possa ser analisado.
Vejamos um exemplo no contexto de produtos digitais: descobrimos que há um problema na manipulação de dados entre uma API e o banco de dados.
Ao analisar esta situação para entender o que está causando o problema, nós quebramos em partes e percebemos que deve ser feita uma correção no componente que permite a conexão a esse banco de dados e que é utilizado pela API.
Neste exemplo, partimos de uma situação ampla e reduzimos para encontrar o problema em uma parte específica.
Apesar de muito importante, o pensamento analítico não é o único processo que devemos carregar na nossa “caixa de ferramentas” de gerentes de produtos, por isso apresento aqui ideias relacionadas ao estudo de sistemas complexos.
Holismo e reducionismo
As ideias do pensamento analítico podem ser transportadas para a interpretação dos conceitos de reducionismo, em que o objetivo é entender as partes fundamentais de algo.
O pensamento analítico, assim como essa ideia de reducionismo, revela o que está por trás de algo e seus elementos fundamentais, mas dificilmente revelam sobre como esses elementos convergem para o funcionamento como um todo.
Nesse momento lançamos mão da visão holística, que nos permite observar o sistema como um todo e compreender também o contexto em que as partes se interagem.
“O todo é maior que a soma das partes”
Esta frase, que vem da Gestalt, mostra que esse “todo” estudado a partir da visão holística possui mais características além das somas das partes, como o comportamento resultante da interação entre as partes.
Enquanto o reducionismo sugere o estudo das partes isoladas, o holismo traz a ideia do todo, levando em consideração o contexto.
“O contexto importa” - Christophe Vorlet
O pensamento sistêmico
A visão sistêmico surgiu a partir de uma disciplina científica chamada Teoria Geral dos Sistemas (TGS), desenvolvida pelo biólogo austríaco von Bertalanffy na década de 1960.
O pensamento sistêmico foi desenvolvido para propor técnicas para estudar os sistemas de maneira holística com a finalidade de complementar os métodos reducionistas.
Nós, como indivíduos, fazemos partes de grupos, de times, de organizações, o que sugere a formação de redes em que os indivíduos estão conectados e interagindo com as outras partes. A mesma visão pode ser aplicada para um produto, que é formato por partes que se interagem e que também pode ser mapeado por meio de uma ou mais redes.
Utilizamos o termo sistema para nos referir, de modo genérico, a casos como esses, em que há conjuntos de elementos interconectados atuando para alcançar o objetivo daquele sistema.
Então, a visão sistêmica é a interpretação de que todos os sistemas são compostos de componentes e subsistemas conectados. De modo contrário à visão reducionista em que cada um desses componentes é visto isoladamente, nós percebemos o sistema como um todo, inclusive observando a propriedade emergente que existe nele.
Nossos produtos são sistemas complexos
Todo produto digital é composto por mais subsistemas, seja em nível de funcionalidades ou até mesmo a nível de software, em que bibliotecas podem ser utilizadas para realizar ações específicas dentre dessa aplicação e contribuir para o funcionamento do produto como um todo.
Podemos afirmar, portanto, que nossos produtos são complexos justamente por essa natureza da conexão entre seus componentes.
Sobre as características dos sistemas complexos, eu gostaria de apresentar inicialmente duas delas: a propriedade emergente e a não-linearidade.
A propriedade emergente de um sistema é observada quando algo novo surge a partir das relações entre seus componentes, ou seja, a emergência de novas atividades como resultado da inter-relação entre os subsistemas e o ambiente.
Trazendo essa visão para nosso contexto de gerenciamento de produtos, podemos utilizar o Instagram como exemplo.
A funcionalidade de stories já foi classificada como feature para imperfect sharing, mas acabou se tornando uma ferramenta incrível para negócios, propagandas e até mesmo de pesquisa, nesse último caso permitindo a geração de insights através das perguntas.
Os stories evoluíram devido ao comportamento da própria rede, refletindo o modo como os usuários passaram a se interagir e a consumir conteúdo - vale lembrar que é uma funcionalidade utilizada diariamente por 500 milhões de usuários.
A emergência dessa dinâmica no consumo de conteúdo na plataforma pode ter impactado também o engajamento na publicações, o que fez com que marcas aparecessem em anúncios com características efêmeras nos stories para também se beneficiarem dessa nova dinâmica.
Outro aspecto importante nos sistemas complexos é a não-linearidade, que dissolve a ideia de simples relação de causa e efeito e traz a ideia de existe uma combinação de fatores que mutuamente influenciam um ao outro.
No nosso dia a dia, um problema pode acontecer em determinado momento do produto — ou em um touchpoint específico — e gerar issues que possam impactar diretamente outras partes desse produto que podem inclusive ser utilizadas por outros perfis de usuários. Quando isso acontece nem sempre temos ideia, e tampouco, controle sobre efeitos como esse.
A observação de relação direta de causa e efeito pode não ser suficiente para interpretar problemas desse tipo, então se torna mais efetivo observar esse produto como uma rede com componentes trocando informações entre si, onde uma falha pode gerar desordem nesse sistema ou então o próprio sistema pode se reorganizar para continuar seu objetivo apesar da issue que surgiu em um componente específico.
Para finalizar, meu objetivo com esse artigo é mostrar como as habilidades de abstrair, visualizar o todo e perceber a não-linearidade tanto no desenvolvimento quando na utilização de produtos digitais são fundamentais para que nós, como product managers, tenhamos dimensão dos sistemas complexos que trabalhamos.